São José do Rio Pardo, ,

27/Mar/2021 - 21:44:51

Falta-nos zelo

Redação

João Luís de Mattos Gonçalves




No ano de 1814 o artista espanhol Francisco de Goya deixou que visse a luz do dia aquela que viria a ser a mais prestigiada dentre as suas várias contribuições para a história da arte: a obra "Três de maio de 1808 em Madrid", que retrata, com crueza, o instante em que soldados do exército napoleônico - de costas para o espectador do quadro - se preparam para fuzilar cidadãos espanhóis que se revoltaram contra a invasão de seu território. Do lado direito dos que estão perfilados em frente aos soldados, os corpos dos que já morreram, em meio ao sangue; do lado esquerdo, o desespero, a dor e o horror daqueles que, em segundos, terão o mesmo destino.

Mas nem tudo se resume a angústia e sofrimento, pois Goya, de forma brilhante, ao mesmo tempo em que denuncia os abusos cometidos contra seu povo, dá a ele contornos de brio, coragem e zelo ao retratar, no centro do quadro, um espanhol que, com os braços abertos - em uma postura que se assemelha à do Cristo crucificado -, se mostra disposto a enfrentar toda aquela situação de injustiça e a defender os seus iguais, ainda que, desarmado e encurralado, aquilo já não fosse possível. Sua ação, que poderia ser vista como inútil diante do fim que ele e seus companheiros experimentaram, parece cumprir o propósito de exclamar, tanto aos soldados quanto aos espectadores da pintura, que ali estavam seres humanos, e que suas vidas tinham algum valor.

Olhar para este quadro me causa certa inquietação, sobretudo porque, para além de todas as duras questões que ele nos apresenta, sempre me pego pensando na realidade brasileira. Como sabemos, são incontáveis os casos de grupos que, ao longo da história, seja por se considerarem superiores, seja por desejarem ampliar as suas posses e riquezas, subjugaram, dominaram e diminuíram outros povos, grupos e etnias, tratando seres humanos como simples entraves para a conquista de seus objetivos e reduzindo-os à condição de descartáveis - a própria invasão napoleônica à Espanha no início do século XIX, retratada por Goya, é exemplo disso. Contudo, o que mais me perturba quando penso no povo brasileiro é a percepção de que, se fossemos invadidos pelas forças armadas de outro país, por exemplo, a grande dificuldade não estaria em mostrar a eles que as nossas vidas têm algum valor. O mais difícil seria provar a muitos de nosso próprio povo que os seus iguais realmente têm algum valor e que, tendo valor, não são descartáveis. Infelizmente, o zelo e a devoção que transbordam do personagem principal de Goya por aqui muitas vezes parecem escassos.

Confesso não saber de onde isso vem. Decerto é resquício da escravidão, período ainda mal compreendido da nossa história, quando seres humanos de amores, de desejos, de medos, de sonhos e de tantas outras coisas foram reduzidos à condição de mercadorias, podendo ser vendidos, trocados, hipotecados e alugados; pode também ser fruto da forma como olhamos (aliás, será que olhamos?) para os mais variados absurdos já ocorridos nestas terras, como os massacres resultantes da Balaiada, da Cabanagem, da Guerra de Canudos e do Contestado, entre tantos outros; ou quem sabe seja consequência do surgimento de um cristianismo estranho, meio capenga, que leva alguns cristãos a fechar os olhos para as injustiças que Cristo tanto condenou; e talvez possa também ser resultado do nosso esforço em normalizar situações que estão a anos-luz de serem normais, como o fato de que neste país ainda temos multidões que não têm o que comer e nem onde morar.

No fundo, acredito que é um pouco de cada um destes fatores que, somados a vários outros, nos levam a banalizar as nossas próprias vidas - umas mais do que outras, sim, mas a verdade é que nenhuma consegue fugir a isto. Talvez nos falte alguém que, assim como na pintura de Goya, mostre aos outros, mas também a nós mesmos, que temos algum valor. E como seria bom se aprendessemos também o que significa este tal patriotismo, de que tanto se fala. Por aqui, muitos dos que se dizem patriotas estão preocupados demais em cantar o hino do país a plenos pulmões e em permanecer abraçados à nossa bandeira, mas acabam se esquecendo de que não há pátria sem povo, sem gente, e não há como ser gente sendo coisa sem valor.

Até que este dia chegue, perduram a tristeza, a lamentação e a retumbante certeza de que temos falhado enquanto comunidade, e falhado feio.


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