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10/Abr/2021 - 20:53:56
Forma rápida de adquirir cultura
Márcio José Lauria
Alguém, muito lido e muito culto, faz sob esse título observações mais que originais a respeito de tema que vem preocupando gerações: a leitura, por vezes obrigatória, de livros importantes da literatura mundial, mas nem por isso sempre agradáveis.
Não raras vezes, a pouco espontânea tarefa é cumprida em nossas escolas de modo sumário e superficial através do uso de resumos alheios que correm de mão em mão, de classe em classe, servindo até a diversas gerações de estudantes. Não é de hoje que esse tipo de condensação nem sempre bem-feita recebe o nome de sebenta, tantos são os seus usuários através de muitos anos.
Pois o espirituoso redator da tal �??forma rápida�?� reduz o enredo de livros famosos a um esqueleto por vezes carregado de grossa malícia. Transcrevo alguns.
De Marcel Proust, �? la Recherche de Temps Perdu (Em busca do Tempo Perdido), com 1.600 páginas:
Um rapaz, asmático, sofre de insônia porque a mãe não lhe dá um beijinho de boa-noite. No dia seguinte (pág. 486 do vol. I), come um bolo e escreve um livro. Nessa noite (pág. 1344, vol. VI) tem um ataque de asma porque a namorada (ou namorado?) se recusa a dar-lhe uns beijinhos. Tudo termina num baile (vol. VII) onde estão todos muito velhinhos �?? e pronto. Fim.
De Leon Tolstoi, Guerra e Paz, com 1.200 páginas:
Um rapaz não quer ir à guerra por estar apaixonado e por isso Napoleão invade Moscou. A mocinha casa-se com outro. Fim.
De Gustave Flaubert, Madame Bovary, com 778 páginas:
Uma dona de casa mete o chifre no marido e transa com o padeiro, o leiteiro, o carteiro, o homem do boteco, o dono da mercearia e um vizinho cheio da grana. Depois entra em depressão, envenena-se e morre. Fim.
De William Shakespeare, Romeu e Julieta:
Dois adolescentes doidinhos se apaixonam, mas as famílias proíbem o namoro. As duas turmas saem na porrada, uma briga danada, muita gente se machuca. Então um padre tem uma ideia idiota e os dois morrem depois de beber veneno, pensando que era sonífero. Fim.
De William Shakespeare, Hamlet:
Um príncipe com insônia passeia pelas muralhas do castelo, quando o fantasma do pai lhe diz que foi morto pelo tio que dorme com a mãe, cujo homem de confiança é o pai da namorada, que entretanto se suicida ao saber que o príncipe matou o pai para se vingar do tio que tinha matado o pai do seu namorado e dormia com a mãe. O príncipe mata o tio que dorme com a mãe, depois de falar com a caveira e morre assassinado pelo irmão da namorada, a mesma que era doida e que tinha se suicidado. Fim.
De Sófocles, �?dipo Rei �?? tragédia grega:
Maluco tira uma onda, não ouve o que um ceguinho lhe diz e acaba matando o pai, casando com a mãe e furando os olhos. Por conta disso, séculos depois, surge a psicanálise que, enquanto mostra que você vai pelo mesmo caminho, lhe arranca os olhos da cara em cada consulta. Fim.
De William Shakespeare, Otelo:
Um rei otário, tremendo zé-ruela, tem um amigo muito cachorro que só pensa em fazê-lo de bobo. O tal �??amigo�?� não ganha um cargo no governo e resolve se vingar do rei, convencendo-o de que a rainha está dando pra outro. O zé-mané acredita e mata a rainha. Depois descobre que não era corno, mas apenas muito burro por ter acreditado no traíra. Prende o cara e fica chorando sozinho. Fim.
Dá para imaginar o que, na mesma linha de construção, se pode escrever a respeito de Dom Casmurro (Machado de Assis, cerca de 350 páginas), por exemplo:
Um sujeito meio fracote, já mais pra lá do que pra cá, põe pra fora os podres da mulher, sua namorada desde a infância. Tudo se complica quando o melhor amigo dele morre afogado e ele presta atenção no jeito que a mulher olha pro defunto. Então começa a reparar como o filho deles é a cara do melhor amigo. Aí a coisa desanda. Fim.