Já escrevi há semanas a respeito da vinda de Arthur Ramos a esta cidade e sobre a correspondência trocada entre ele e o juiz de Direito da época; agora trago aos leitores algumas cartas do grande responsável pela vinda desse brilhante conferencista à Semana Euclidiana de 1948: Dr. Oswaldo Galotti.

Dr. Galotti é, para mim, grande saudade. Além de ter sido sua paciente quando eu era criança (faz um bom tempo!), ele foi um grande incentivador para que eu continuasse no movimento euclidiano. Mas vamos ao assunto que interessa: as duas cartas do dr. Galotti a Ramos, hoje pertencentes ao arquivo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
A primeira é datada de 19 de janeiro (vejam como se convidava para a Semana logo no início do ano) e faz o convite a Ramos para ser o conferencista oficial da Semana de 1948, uma das mais importantes na história da tradição euclidiana nesta cidade. Transcrevo-a na íntegra:

"A Casa de Euclides da Cunha de São José do Rio Pardo, em uma de suas reuniões de setembro de 1947 resolveu dedicar as comemorações Euclidianas de 1948 a estudos de Antropologia.
Toda a Semana Euclidiana de 1948 será de Antropologia Brasileira. Por isso procuramos logo o professor Egon Shaden, da Faculdade de Filosofia de São Paulo, para orientar-nos e traçar o programa dessa Semana de Antropologia. Ele aceitou com entusiasmo, e conversando sobre como deverá ser essa reunião disse que a conferência principal do conclave deveria estar a cargo do Sr.
Deve já ter ele lhe escrito e reafirmando o convite que lhe fez pede a Casa de Euclides que o aceite para maior realce da Semana Euclidiana de Antropologia do corrente ano.
A Semana Euclidiana vai de 9 a 15 de agosto, anualmente. Sua conferência será pronunciada dia 14 de agosto, à noite, encerrando o programa cultural dessa Semana em homenagem a Euclides.
A respeito do tema da conferência deixamos a seu cargo a escolha. Gostaríamos que o Sr. explanasse sobre problemas gerais de contatos de raças e culturas no Brasil e suas consequências sociológicas, políticas, artísticas, etc. (desculpe-me a impropriedade de expressões, pois sou mais euclidiano do que antropólogo...). Gostaríamos também que o Sr. dissesse algo sobre a Antropologia na obra euclidiana. Seria um estudo que daríamos depois larga divulgação.

A Diretoria da Casa de Euclides faz questão de levar avante o lema euclidiano lançado por Cassiano Ricardo em sua conferência aqui, no ano passado: "Vamos embora para o Brasil. Penetremos na Pátria".
Baseados nesse lema traçamos um plano de 5 anos de estudos brasileiros. Cada ano, na Semana Euclidiana, realizaremos uma parte. Este primeiro ano, do nosso plano de penetrar verticalmente no Brasil, dedicaremos a estudos antropológicos. No ano vindouro dedicaremos à Geografia do Brasil, depois Sociologia; Educação e História Política do Brasil.
A nossa intenção é a melhor possível, pelo menos a mais euclidiana e patriótica possível.
Contamos certos com sua indispensável colaboração.
Deverei ir ao Rio até maio e então vou procurá-lo para acertar detalhes. Queremos que o Sr. traga seus melhores alunos e para todos arranjaremos passe e hospedagem. Como durante toda a Semana há bailes e festas sociais diversas muito gostaríamos que o Sr. trouxesse pessoas de sua família.  
Ao seu dispor, abraço euclidiano. Oswaldo Galotti, secretário da Casa de Euclides, São José do Rio Pardo, L. Mogiana, E.S. Paulo.
P.S. Para que a Semana tenha um certo caráter de Semana dedicada só à Antropologia gostaríamos que o Sr. conseguisse interessar, na sua realização, a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia. Com antropólogos do Rio, S. Paulo, Paraná e, se possível, da Bahia (um primo de Euclides é lá Secretário da Aviação) poderemos ventilar o assunto da fundação do Instituto Brasileiro de Antropologia. Seria uma justa homenagem a Euclides, um verdadeiro precursor da antropologia brasileira".

A outra correspondência é de 12 de junho de 1948, também do dr. Galotti a Arthur Ramos, enviando a este uma cópia datilografada da programação da Semana Euclidiana daquele ano.
De início, o dr. Galotti deseja que Ramos esteja restabelecido completamente (com certeza o antropólogo havia comunicado estar doente), para "termos a grande satisfação e honra de recebê-lo nessa próxima semana de Estudos Antropológicos" - diz Galotti - e informa que haviam colocado no programa um título provisório para a conferência, Os grandes problemas da Antropologia Brasileira, mas que esperariam até 20 de junho para colocar o título definitivo.
Nessa carta, Galotti afirma também que os programas seriam impressos nos primeiros dias de julho, para distribuição em todo o Estado, e acrescenta:

"Quanto à caravana de Estudantes, devemos informar que não conseguimos arranjar passes para a viagem. Se aí no Rio for fácil isso teremos imenso prazer em hospedá-los aqui, por nossa conta. Quanto à sua viagem reservaremos no Cruzeiro do Sul uma cabine para o Sr. e sua Senhora e de S. Paulo para cá também reservaremos os lugares. Se pretender trazer mais alguém é só avisar-nos.
Os Srs. deverão aqui ficar  2 ou 3 dias, ou quanto quiserem. �? espera da sua carta aqui estamos às ordens. Oswaldo Galotti, S. José do Rio Pardo, S.M. - rua Marechal Deodoro, 283".

 Na carta de 5 de julho desse mesmo ano, Galotti fala da satisfação com a resposta positiva de Ramos, da vinda da esposa deste e escreve sugestões para a viagem:

"Os Srs. deverão sair daí dia 12, de noturno. Passarão um dia em S. Paulo (pois os trens não combinam para viagem imediata). Dia 14 cedo saem de S. Paulo, chegando aqui às 3 horas da tarde. A conferência será à noite. Poderá voltar dia 15 cedo. Chega 15 em S. Paulo com bastante tempo de tomar o noturno de volta para o Rio, a fim de estar aí dia 16, cedo", mas diz também que eles deveriam ficar aqui uns três dias, "para conhecerem alguma fazenda paulista ou fazerem outros passeios".
Avisa ainda que ele receberia as passagens em mãos, tanto no Rio como em São Paulo, "a fim de evitar-lhes aborrecimentos e corre-corre para adquiri-las".
Há mais dessa correspondência entre os dois, mas já ultrapassei o espaço que me cabe no jornal, então deixarei para uma próxima oportunidade.
Mas essa leitura me trouxe também uma ideia: por que não resgatar esse tema da Antropologia na Semana Euclidiana de 2021, agora aplicada à sociedade atual? Fica a sugestão, porque ainda há muito do Brasil esquecido pelos grandes centros econômicos: lembremo-nos do que acontece no Amazonas e em tantas regiões distantes para nós, paulistas e fluminenses!