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03/Jul/2021 - 21:22:24
Normalidade para dominar
RedaçãoGUILHERME LISBOA MORGAN
Ao direcionar as atenções aos diversos discursos, é de fácil percepção a repetição constante nas orações pronunciadas e escritas pelo desejo latente da normalidade confortante, ou ainda em termos pandêmicos de um novo normal. Segundo o Dicionário Online de Português, para uma possível conceituação da palavra normal, torna-se imprescindível a utilização de vocábulos como: regra, comum, natural.
No entanto, um movimento interessante de promoção individual-sócio-político é o questionamento referente ao normal/regra/comum/natural para quem? Com qual intuito? E quais desdobramentos desse fenômeno para a vida do ser?
Para uma reflexão acerca desse assunto, pode-se apoiar nos mais diversos pensadores, dentre eles destacam-se Nietzsche e Foucault, nomes ímpares para o entendimento do sujeito e, consequentemente, da sociedade contemporânea e suas lógicas vigentes. Em consonância com as ideias dos autores, defendidas e construídas em sua trajetória, o poder e suas verdades é viabilizado e articulado como uma lógica de dominação consensual, a qual produz identidades homogêneas aversivas de alteridades. Estas que excluem e denominam de desvios, loucos, inferiores, dentre outros adjetivos os indesejáveis que ameaçam a engrenagem do sistema social capitalista-burguês-patriarcal-misógeno-branco-hétero-cis.
Por detrás desta realidade, agem os dispositivos de poder, assim como chamado por Foucault, os quais disseminam uma ditadura da identidade pela qual segrega os indivíduos, controlando-os a partir de massificações das subjetividades, padronizações, existências e docilização dos corpos. Sendo assim, esta necessidade de um normal facilita a individualização e a alienação, dificultando a reflexão crítica, a formação de multidões e ações políticas frente às mudanças, tornando cada vez mais cômodo para um público específico castrar as demais formas de se relacionar com o mundo, além de ditar quem é digno de afetos, possuir direitos, oportunidades, liberdade, voz, e até mesmo quem pode viver ou merece morrer.
Já nas décadas de 1970 e 1980, as músicas, em especial o Rock brasileiro, assumem uma particularidade política frente às normatizações, tendo como ferramenta as letras das canções que escancararam os jogos de poder, proporcionando um terreno reflexivo e ressignificativo de experimentações outras de existência. Como exemplo, é seguro citar Raul Seixas, com as melodias "Metamorfose ambulante", "Mosca na sopa" e os Titãs, com "Não vou me adaptar".
Nesta esteira, na atualidade, esta árdua tarefa de desvelar a sociedade se encontra presente nas produções de Rap, os quais transgridem por meio de suas rimas e poéticas, o que é naturalizado pela grande parcela da população. De encontro ao defendido pelos artistas, traça-se um paralelo plausível com o legado de Nietzsche, Rancière, Deleuze e Guattari, de uma vida autêntica, autopoiética, aberta para e pelo outro, criando rizomas em conexões constantes, realizando desejos. Tendo como protagonista o respeito pelo desigual, fazendo do existir uma verdadeira obra de arte em estado de vontade de potência, assumindo para si as palavras experimentações e hibridismo como norteadores, frente às padronizações e institucionalizações.
Contudo, a arte, esta que é entendida por uma maioria como periférica, traz consigo um caráter de denúncia, significador, crítico e sensível, a qual tem um papel importante no embate contra a construção de uma lógica de normalização consensual e docilização alienada, permitindo a expansão de lugares inabitados a serem ocupados, construindo novos sentidos para o indivíduo, consequentemente para o socius, criando espaços heterogêneos de movimentos e fluxos infinitos de identidade.
Afinal, como dizia Raul Seixas, "(..) Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante. Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo (...)".