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24/Jul/2021 - 22:22:52
A burguesia não liga para a dor
RedaçãoSHELDA COLPANI
Getúlio Omito, de 83 anos, chamava a neta de "meu ouro", Fernanda Caiuby Novaes Salata, 64, retratou em aquarelas os amigos imaginários dos filhos, Cardoso Duarte, 68, cochilava à mesa durante os almoços de família, Firmina Marques de Sousa, 97, reservou um par de sapatos para calçar assim que entrasse no céu. Quitéria Cordeiro dos Santos, 85, sonhava em aparecer na tevê. Não conseguiu. Antônia Rossignolli Abate, 73, não desgrudava do cachorro Paçoca. Jaime Antunes, 92, beijava o retrato da esposa ao acordar, que, por acaso, também se foi e deixou saudades. Letícia Neworal Fava, 28, gostava de admirar o pôr do sol. Paulo Gustavo, 42, imitava a mãe e fazia piada sobre tudo e, mesmo com toda a alegria, não resistiu à COVID-19.
Somos mais de 500 mil (mortos), e Cazuza acertou: a Burguesia não liga para a dor! Morremos hoje em São Paulo, em Minas Gerais, em Brasília. Morremos em Codó, em Quixeramobim, Araguainha. Morremos na Serra da Saudade e no Cedro do Abaeté. Deixamos para trás filhos, netos, tios, avós. Não nos despedimos das nossas mães, dos nossos amigos, dos nossos vizinhos. Não sabíamos quando seria o último noticiário o qual assistiríamos, mas certamente este falaria algo a respeito de como o Brasil vai mal, de como o número de mortes cresce de forma exponencial. Este falaria sobre a falta de imunizantes, sobre algum escândalo quanto as ações negacionistas referentes à compra de vacinas. Falaria sobre a causa das milhões de mortes.
Somos mais de 500 mil que morremos. De COVID-19, de falta de auxílio emergencial, de desemprego, de falta de saneamento básico, da contínua troca de Ministro da Saúde em meio a maior crise sanitária já vivenciada no mundo. Morremos de Bolsonaro, de Pazuelo, morremos de protestos conta o lockdown, de fake news, de falta de vacinas, de falta de respiradores, de tratamento precoce, Cloroquina, da aceitabilidade da ocorrência de uma Copa América no país, no ápice de uma pandemia global.
A Burguesia não liga para a dor, não liga para a classe média, quiçá para o pobre. A Burguesia não liga para o negro, para o homossexual, para a mulher. A Burguesia não liga para o proletariado, para o microempresário ou para o profissional autônomo. A Burguesia não liga para o senhor José que deixou três filhos pequenos e uma mulher desamparados, não liga para João, Antônio, Carlos, Maria, Clara, Ana. A Burguesia não se importa com uma "gripezinha".
O Brasil é o segundo país do mundo a perder meio milhão de pessoas para a Covid-19, após dezesseis meses de pandemia, caminhando em direção a uma terceira onda. Em junho, um brasileiro morreu de Covid a cada 44 segundos. No mesmo mês, o Presidente Jair Messias Bolsonaro confirmou que o Brasil sediaria a Copa América. Nos primeiros dez dias de junho deste ano, o Brasil foi o terceiro país do mundo que mais buscou por "falta de ar" no Google.
Os números são alarmantes, e mais inquietante do que isso é a lembrança diária de que não se trata meramente de números, mas sim de vidas, sonhos, histórias que não merecem e não podem ser esquecidas. Somos 500 mil mortos; pois morremos um pouco a cada dia em que acordamos, mas a burguesia dorme tranquila.
Se Cazuza estivesse vivo, ainda hoje reafirmaria: "A burguesia fede/ A burguesia quer ficar rica/ Enquanto houver burguesia/ Não vai haver poesia".
Toda solidariedade às famílias e aos amigos das vítimas. A burguesia não liga para a dor, mas nós temos a obrigação de ligar. Se puder, fique em casa!
* As informações deste texto foram extraídas do portal Inumeráveis e de obituários publicados na Folha de S. Paulo.