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23/Out/2021 - 19:27:23
A relevância das diferentes esferas da ONU para a compreensão dos conflitos internacionais
RedaçãoTHAÃS BORTOLOZZO BOLDRIN
Uma prática muito comum dentro da sociedade civil quando os debates e polêmicas giram em torno de assuntos internacionais é questionar o papel e a atuação da Organização das Nações Unidas (ONU) no sistema internacional. A grande maioria desses indivíduos, quando evocam o nome "ONU" em face a tais discussões, apresentam, na realidade, uma perspectiva muito abstrata acerca do funcionamento dessa organização internacional, que é formada por grupos distintos, os quais executam diferentes funções, que são imprescindíveis para o seu funcionamento.
Tradicionalmente, os analistas e estudiosos de Relações Internacionais identificam a existência de duas esferas das Nações Unidas, uma composta por Estados-membros, que são os responsáveis por determinar a agenda da ONU, tomando as decisões, estabelecendo prioridades e "pagando as suas contas", e a outra pelo Secretariado - o corpo responsável pela implementação das decisões tomadas por esses Estados-membros, pelas atividades da organização e pela sistematização das informações que circulam.
Contudo, a década de 1970, que conta com a emergência de novos atores no sistema internacional, contemplando a ascensão do terceiro mundo e de forças não-estatais, exigiu que os analistas de Relações Internacionais revisassem suas maneiras de interpretar as interações no sistema, ampliando as concepções que até então resumiam-se em Estado, mercado e sociedade civil. ? nesse contexto que se torna essencial a adoção da noção de existência de uma terceira ONU, que é formada por atores que não fazem formalmente parte da organização, como as organizações não-governamentais (ONGs), universidades, acadêmicos, consultores, especialistas, comissões independentes de lideranças sociais e outros grupos de indivíduos que trabalham e se engajam rotineiramente com a primeira e a segunda ONU, influenciando o pensamento, políticas, prioridades e ações da organização.
Trazendo a exposição dessas diferentes esferas de atuação da ONU para um contexto atual, nos últimos meses tem sido muito discutida a situação no Afeganistão, e, no decorrer desses debates sempre surgem comentários como "por que a ONU não está fazendo nada?", "onde está o exército da ONU e por que ele não está intervindo no país?", entre outros. Desenvolvendo um panorama geral do conflito, muito do que assistimos atualmente resume-se ao fato de que os EUA permaneceram por 20 anos ocupando o território do Afeganistão sob o discurso de "guerra ao terrorismo", mas sem apresentar nenhum plano concreto de estabilização do país, mantendo apenas um governo vinculado aos seus interesses nacionais. Agora, em 2021, que a intervenção chegou ao seu fim, não existe um plano nacional do governo afegão, pois este seguia recomendações estreitas do governo estadunidense sobre como prosseguir, e esse vácuo de governança deu margem para que o Talibã, fortalecido, pudesse entrar em cena novamente.
No que concerne ao "papel da ONU" frente a essa situação, antes de nos questionarmos, é sempre necessário considerar as suas diferentes esferas de atuação. O papel da terceira ONU, nesse contexto, foi imprescindível para destacar a prioridade de debater a situação: figuras importantes na cena da luta social, como Malala Yousafzai, ONG´s e os demais "braços da ONU" foram responsáveis por encaminhar as preocupações às duas outras esferas, estabelecendo um fórum de debates para que os membros do Secretariado, por exemplo, como o atual Secretário-Geral António Guterres, pudessem tomar iniciativas - emitindo alertas, declarações de compromisso com os afegãos e convocando encontros para discutir e ampliar respostas humanitárias. Contudo, a tomada de decisão frente a uma possível intervenção direta que vem sendo tão questionada nas discussões em veículos midiáticos e rodas de conversa depende diretamente da primeira esfera da ONU, isto é, dos seus Estados-membros.
Por fim, enquanto não for do interesse dos 15 Estados-membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), o órgão da organização que lida com as questões de ameaças à Paz e Segurança Internacional, tais intervenções que estão constantemente sendo questionadas não serão uma realidade, haja vista que não cabe aos funcionários da secretaria da organização decidir sobre isso. As esferas da ONU estão desenvolvendo esforços para responder às necessidades afegãs seguindo seus respectivos mandatos.
Devemos, por esse motivo, ter sempre em mente essa noção de que a ONU é uma organização multifacetada, com diferentes esferas exercendo diferentes funções para que seja possível compreender a sua atuação frente aos conflitos internacionais.